sábado, 28 de abril de 2012

O NOVO REGIME DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO


Intervenção proferida pelo Prof. Doutor Mário Aroso de Almeida
*

O NOVO REGIME DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO


O contencioso administrativo português foi objecto de uma importante reforma,

introduzida pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, que aprovou o novo Estatuto dos

Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), e pela Lei nº 15/2002, de 22 de Fevereiro,

que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA, entretanto

alterado pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro). O novo Estatuto e o Código vão

entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2004.

Sucessivamente prometida e adiada ao longo de quase vinte anos, a reforma do contencioso

administrativo era por todos reconhecida como absolutamente indispensável à

plena instituição do Estado de Direito democrático em Portugal. Com efeito, o contencioso

administrativo português ainda não tinha sido objecto, desde a instituição da democracia,

da reforma profunda que se impunha. Trata-se, pois, de dar resposta a uma

necessidade que desde há muito era sentida, nos dois planos em que a questão se

colocava.

a) Em primeiro lugar, no plano da organização e funcionamento dos tribunais.

Com efeito, o enorme crescimento da litigiosidade em matéria administrativa exigia

que se procedesse à reorganização do quadro das competências dos respectivos

tribunais, libertando os tribunais superiores das vastas competências de julgamento em

primeira instância de que ainda dispunham e criando uma rede de tribunais

administrativos de primeira instância que permita uma adequada cobertura do território

nacional. Por outro lado, a reforma concretiza a tão aguardada transferência dos

tribunais tributários para o Ministério da Justiça, incorporando-os na nova rede de

tribunais, que passam, portanto, a ser tribunais administrativos e fiscais.

Em conexão com isto, a presente reforma introduz, no micro-cosmos da justiça administrativa,

soluções inovadoras nos domínios da organização interna dos tribunais e

da disponibilização de novos meios de gestão de processos, com o que se visa obter

maiores padrões de racionalidade e, por conseguinte, níveis mais elevados de eficácia e

de eficiência no funcionamento deste sector da justiça.


*

Intervenção proferida em Lisboa, em 4 de Dezembro de 2003, no âmbito do Colóquio sobre A


Reforma do Contencioso Administrativo , organizado pelo Gabinete de Política Legislativa e

Planeamento do Ministério da Justiça.


b) Em segundo lugar, no plano da regulação do regime processual.

Com efeito, o regime processual do nosso contencioso administrativo permaneceu,

no essencial, fiel, até aos nossos dias, a um modelo assente, à maneira francesa, no

recurso contencioso de anulação de actos administrativos. Por outro lado, era marcado

pela existência de inaceitáveis limitações quanto aos meios de prova admissíveis em

juízo e por um formalismo exacerbado, que dificultava o acesso à justiça, dando origem

a um elevado número de decisões em que o tribunal não se chegava a pronunciar sobre

o mérito das causas. Também neste plano, a reforma era indispensável à concretização

do direito à tutela judicial efectiva dos cidadãos perante os poderes públicos, que resulta

do modelo jurídico-constitucional vigente.

É nestes dois planos que se concretiza esta ambiciosa reforma, destinada, como se

vê, a transformar, em aspectos decisivos, a nossa justiça administrativa. Procuremos,

pois, dar conta das grandes linhas de força que, em cada um desses planos, inspiram a

reforma.


1. Organização e funcionamento dos tribunais: a refundação da justiça

administrativa e fiscal


1.1. No plano da organização dos tribunais, pode dizer-se que a presente reforma

procede a uma verdadeira

refundação da nossa justiça administrativa e fiscal.


Com efeito, trata-se de, pela primeira vez na nossa História, criar e instalar uma rede

de tribunais administrativos e fiscais de primeira instância, dimensionada para cobrir

todo o território nacional, por forma a dar finalmente a resposta adequada ao

crescimento exponencial de litígios que, nesta área, se registou ao longo dos últimos

trinta anos.

São praticamente eliminadas as competências em primeira instância que eram

atribuídas ao Tribunal Central Administrativo e ao Supremo Tribunal Administrativo,

pelo que praticamente todos os processos passam a ser julgados, em primeira instância,

pelos tribunais de primeira instância. E passam a existir os seguintes tribunais

administrativos e fiscais de primeira instância: quatro na área metropolitana de Lisboa

(em Lisboa, Sintra, Loures e Almada), dois na área metropolitana do Porto (no Porto e

em Penafiel) e ainda os tribunais de Braga, Mirandela, Coimbra, Viseu, Castelo Branco,

Leiria, Beja e Loulé.

Cumpre recordar que esta reforma foi precedida da realização de um estudo de

redimensionamento dos tribunais administrativos e fiscais, encomendado, na sequência

de um concurso público internacional, à empresa de consultoria

Accenture. No


essencial, o mapa em que se baseou a instalação da nova rede de tribunais de primeira

instância resultou desse estudo, assim como a opção por criar os novos tribunais como

tribunais agregados, com competências de natureza administrativa e fiscal.

1.2. Na verdade, a presente reforma era a ocasião propícia para dar, finalmente, concretização

à transferência dos tribunais tributários para o Ministério da Justiça, que a

Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, tinha determinado e impunha que se concretizasse no

prazo de seis meses, mas que tardava em ser efectivada. Essa transferência é,

finalmente, concretizada com o Decreto-Lei complementar do novo ETAF, que foi

aprovado em Conselho de Ministros na passada quinta-feira, dia 27 de Novembro, e que

determina a extinção dos actuais tribunais tributários, fixando em 1 de Janeiro próximo

a data para a transferência das suas competências, bem como dos processos nele

pendentes, para os novos tribunais administrativos e fiscais de primeira instância.

Trata-se de um passo da maior importância, que eu me arriscaria mesmo a qualificar

como um momento verdadeiramente histórico, do ponto de vista da construção da cidadania

no Portugal democrático. Com efeito, ao retirar a justiça tributária da dependência

funcional do Ministério das Finanças, criando as condições para que ela deixe de

funcionar em espaços das Finanças, com funcionários das Finanças, põe-se um ponto

final na inaceitável promiscuidade que, neste plano, existia entre o tribunal que julgava

a administração tributária e a administração tributária que era julgada por ele. Todos os

que conhecem as condições em que, até aqui, funcionavam os tribunais tributários

compreendem a enorme importância deste passo.

A opção pela agregação deve ser, antes de mais, devidamente compreendida. Por

regra, os novos tribunais administrativos e fiscais de primeira instância vão ter secções

separadas para os processos administrativos e para os processos tributários e juízes

separadamente afectos a cada um destes dois tipos de processos. Só não irá ser assim

nos tribunais de mais pequena dimensão, em que essa separação não se justifica ou não

é possível: é o caso dos tribunais de Beja e de Mirandela, que, deste modo, se vêm

juntar aos casos do Funchal e de Ponta Delgada, em que já era assim. Do que se trata é,

portanto, de partilhar o mesmo espaço físico e as estruturas de uso comum do tribunal,

criando economias de escala que assegurem uma maior eficácia e eficiência na gestão

dos recursos, mas sem perda da necessária especialização, de juízes e de funcionários.

E quanto a este ponto, importa que sejamos claros.

O Ministério da Justiça está a fazer um enorme esforço financeiro, num período de

forte constrangimento orçamental, para assegurar aos cidadãos algo que, como já disse,

não pode deixar de ser qualificado como uma conquista histórica, cujos efeitos estou

certo que serão, a breve trecho, bem visíveis: retirar os tribunais tributários da

dependência funcional do Ministério das Finanças, fazendo com que eles passem,

finalmente, a funcionar como tribunais de corpo inteiro, em condições idênticas às dos

demais tribunais.

Ora, é perfeitamente compreensível que, neste contexto, e com base nos estudos

científicos de redimensionamento que foram efectuados, se aproveitem as indiscutíveis

economias de escala que resultam da agregação dos tribunais tributários com os novos

tribunais administrativos de primeira instância, por forma a assegurar uma cobertura

equilibrada do território no domínio da justiça administrativa e fiscal. Ainda que este

esforço, de levar a justiça administrativa aonde ela nunca tinha podido chegar, tenha,

pelo menos nesta fase, de ser acompanhado do encerramento de alguns tribunais

tributários, num ou noutro ponto do país, parece-me evidente que o balanço é altamente

positivo.

1.3 Foi, entretanto, assumida a opção de extinguir, em 1 de Janeiro de 2004, o

Tribunal Central Administrativo, substituindo-o por dois Tribunais Centrais

Administrativos, o Tribunal Central Administrativo Norte e o Tribunal Central

Administrativo Sul, respectivamente sediados no Porto e em Lisboa. A exemplo do que

irá suceder com os actuais tribunais administrativos de círculo de Lisboa, Porto e

Coimbra, o actual Tribunal Central Administrativo continuará, entretanto, a funcionar,

nas actuais instalações, como um juízo liquidatário do novo Tribunal Central

Administrativo de Lisboa, ao qual continuarão afectos os processos que nele se

encontrem pendentes em 1 de Janeiro de 2004.

Esta opção da criação dos novos Tribunais Centrais Administrativos está consubstanciada

no já mencionado Decreto-Lei complementar do novo ETAF, que acaba de ser

aprovado em Conselho de Ministros, e numa proposta de Lei de alteração ao ETAF, que

se encontra pendente na Assembleia da República, e inscreve-se na filosofia geral da

reforma, claramente orientada no sentido de aproximar a nossa justiça administrativa,

desde sempre excessivamente centrada em Lisboa, das populações que, um pouco por

todo o país, a ela se dirigem.

Os novos Tribunais Centrais Administrativos de Lisboa e Porto passam a ser, a

exemplo do que sucede com os Tribunais da Relação, a instância normal de recurso (de

apelação) das decisões proferidas pelos tribunais de primeira instância (cfr. artº 37º do

ETAF), sem prejuízo da existência de um (excepcional) recurso de revista,

per saltum,


para o Supremo Tribunal Administrativo, circunscrito à apreciação de questões de

direito (cfr. artº 151º do CPTA).

1.4. No que diz respeito ao funcionamento interno dos novos tribunais

administrativos e fiscais de primeira instância, foi gizado um novo modelo que procura

assegurar uma gestão menos formalizada da secção de processos, que permita criar

sinergias e retirar o máximo partido da nova aplicação informática.

Em conformidade com as propostas contidas no já mencionado estudo elaborado

pela

Accenture, cada tribunal (cuja dimensão, como já foi dito, justifique a separação


entre administrativo e tributário) terá uma única secção de processos administrativos e

uma única secção de processos tributários. Nos tribunais com alguma dimensão, a

secção administrativa e a secção tributária desdobrar-se-ão em unidades de funcionários,

cada uma das quais desenvolverá a sua actividade sob a orientação de um escrivão.

Mas estas unidades distinguem-se das tradicionais secções porque não são configuradas

como estruturas rígidas, cada uma das quais afecta a um juiz específico, mas como

estruturas de composição flexível, que pode ser alterada em função das necessidades, e

que serão afectas à tramitação dos processos que lhes tenham sido distribuídos segundo

critérios de racionalidade, determinados pela aplicação informática.

A grande aposta que irá ser, aliás, objecto de exposição autónoma no âmbito

deste colóquio é, entretanto, a digitalização dos processos nos novos tribunais.

Seleccionada no âmbito de um concurso público internacional, a

Deloite & Touche


acaba de elaborar uma aplicação informática especificamente concebida para estes

novos tribunais, no pressuposto da digitalização dos respectivos processos. De acordo

com o já mencionado Decreto-Lei complementar do novo ETAF, que acaba de ser

aprovado em Conselho de Ministros, o novo modelo preconiza a utilização do

site de


cada tribunal para o envio dos articulados e outros documentos em suporte digital e

impõe que se proceda à digitalização de todos os documentos em papel que cheguem ao

tribunal e possam ser digitalizados.

A digitalização exige um considerável esforço financeiro por parte do Ministério da

Justiça, mas tem indiscutíveis vantagens, que por certo transparecerão da exposição que

irá ser feita sobre o tema. Limitar-me-ei, por isso, apenas a realçar, como mais

importantes, a circunstância de tornar possível facultar aos operadores

designadamente aos advogados das partes, que, nessa qualidade, ficam identificados no

sistema o acesso remoto aos processos a todo o tempo, e reduzir ao mínimo

indispensável o arquivamento e manuseamento do papel, seja por magistrados, seja por

funcionários de justiça, o que, como é evidente, permitirá agilizar a realização das

tarefas que lhes cumpre desempenhar.


2. Grandes linhas de força da reforma do processo: dimensões da tutela judicial

efectiva em matéria administrativa


2.1. Sem pretender usurpar o objecto das intervenções que se seguem, não posso

deixar de, numa intervenção de enquadramento, referir-me às grandes linhas

inspiradoras da reforma no plano processual.

E começo por referir que está em fase adiantada de preparação uma revisão do

Código de Procedimento e Processo Tributário que visa adequar o processo tributário às

profundas inovações introduzidas no contencioso administrativo. Trata-se de uma

revisão, a meu ver, imprescindível e que, também ela, representará um importante salto

qualitativo, do ponto de vista do reforço das garantias jurisdicionais dos cidadãos

perante a administração tributária.

2.2. Como já foi referido, o nosso contencioso administrativo tem permanecido, no

essencial, fiel a um modelo ainda fundamentalmente centrado no recurso contencioso

de anulação de actos administrativos e marcado pela existência de inaceitáveis

limitações quanto aos meios de prova admissíveis em juízo e por um excessivo

formalismo, que dificultava o acesso à justiça, dando origem a um elevado número de

decisões em que o tribunal não se chegava a pronunciar sobre o mérito das causas.

A reforma era, por isso, indispensável e, de resto, constitucionalmente

obrigatória. Com efeito, a Constituição consagra o direito à tutela judicial efectiva

perante os poderes públicos, assumindo expressamente, desde a revisão constitucional

de 1997, que esse direito se concretiza, não só na impugnação de actos administrativos

e de regulamentos, mas também na possibilidade de obter o reconhecimento de direitos

ou interesses, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a

adopção das providências cautelares adequadas: cfr. artigo 268º, nºs 4 e 5, da

Constituição. A redefinição do quadro dos meios processuais existentes, de modo a

assegurar que estas pretensões possam ser accionadas, constituía, assim, uma exigência

formal e expressamente imposta pelo próprio texto constitucional .

No plano da regulação do processo, o aspecto mais relevante da reforma tem, pois,

que ver com a concretização do imperativo constitucional de assegurar que os tribunais

administrativos proporcionam uma tutela jurisdicional efectiva a quem a eles se dirige

em busca de protecção.

O propósito de cumprir esse imperativo é assumido no artigo 2º do CPTA, que consagra

o princípio de que todos os direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos

passam a poder ser objecto da acção que melhor se adeque à sua protecção jurisdicional,

sem que continuem a existir limitações, no plano processual, que ponham em causa

a efectividade da sua actuação em juízo. E, em correspondência com isto, o artigo 3º do

CPTA esclarece que os tribunais administrativos passam a ter os mais amplos poderes

de pronúncia, sem outras limitações para além daquelas que resultam do respeito pelos

limites decorrentes da discricionariedade administrativa, nos domínios reservados à

formulação de juízos de conveniência ou de oportunidade por parte da Administração.

A partir do momento em que passa a ser possível deduzir todo o tipo de pretensões, não

pode deixar, na verdade, de ser possível a emissão de todo o tipo de pronúncias.

2.3. No plano da tutela declarativa e, mais concretamente, dos poderes de pronúncia

que os tribunais administrativos passam a ter nos processos principais que, perante eles,

são deduzidos, cumpre realçar a enorme importância de que, na economia da reforma,

se reveste o alargamento dos poderes de condenação dirigidos contra a Administração.

A jurisdição administrativa deixa, na verdade, de ser uma jurisdição de poderes limitados,

a cujos juízes não era reconhecida a possibilidade de emitir todo o tipo de

pronúncias, o que implica a superação da tradicional inibição em reconhecer aos tribunais

administrativos amplos poderes de condenação da Administração. Com efeito, a

tutela jurisdicional só é efectiva se for capaz de proporcionar a emissão de sentenças de

condenação dirigidas contra a Administração sempre que seja essa a providência que

melhor corresponde à configuração concreta da situação em juízo. A Administração

deixa, por isso, de só poder ser condenada ao pagamento de indemnizações, no âmbito

das acções de responsabilidade civil, para passar a poder (e a dever) sê-lo sempre que

esteja constituída em deveres jurídicos. E a condenação, importa notá-lo, tanto pode

dizer respeito ao dever de praticar actos jurídicos, como de realizar prestações

materiais.

Isto significa que passa a ser, por exemplo, possível pedir a condenação da Administração

ao restabelecimento de situações de facto que tenham sido ilegalmente alteradas,

ao pagamento de quantias em dinheiro, à entrega de coisas ou à prestação de factos;

como também à abstenção de comportamentos, incluindo à abstenção da prática de

actos administrativos, em situações em que exista a ameaça de uma lesão futura (cfr.

artigos 2º, nº 2, e 37º, nº 2, do CPTA).

Cumpre, sobretudo, realçar a enorme importância da introdução da possibilidade da

condenação da Administração à prática de actos administrativos. Ultrapassa-se, deste

modo, uma tradicional limitação do contencioso administrativo de tipo francês, apenas

explicável por razões históricas radicadas no lastro cultural herdado do modelo de

Administração autoritária edificado durante o período do absolutismo. Com efeito, se,

com a instituição do Estado de Direito liberal, o Poder Administrativo aceitou submeter-

se a regras jurídicas e à fiscalização do cumprimento dessas regras, é bem sabido

que essa aceitação não se deu sem reservas nem limites. O Poder Administrativo aceitou

submeter-se a algumas regras, que só com o decurso do tempo se foram alargando,

e só aceitou submeter-se à fiscalização de órgãos que não eram verdadeiros tribunais,

integrados no Poder Judicial, nem tinham poderes de plena jurisdição, pois, no domínio

do exercício dos poderes de autoridade da Administração, só eram autorizados a emitir

sentenças de anulação, sem que lhes fosse permitido proferir sentenças de condenação à

prática de actos administrativos (muito menos, de normas regulamentares ). Uma vez

assegurada, no termo de uma evolução histórica longa e conturbada, a integral subordinação

da Administração a regras jurídicas e a atribuição da fiscalização do cumprimento

dessas regras a verdadeiros tribunais, trata-se agora de fechar o círculo e conferir

aos tribunais administrativos os poderes de plena jurisdição que são próprios do Poder

Judicial.

Repare-se que a condenação à prática de actos administrativos tanto se pode concretizar

numa condenação no puro dever de decidir, no exercício de poderes discricionários;

como na condenação à prática de um acto com um determinado conteúdo; como

ainda na determinação das vinculações a observar na prática do acto administrativo (cfr.

artigo 71º do CPTA). Tudo depende, naturalmente, do quadro normativo e das

concretas circunstâncias de facto que vierem a ser apuradas em juízo. Mesmo quando

não esteja em causa a emissão de um acto de conteúdo vinculado e a emissão do acto

pretendido envolva, portanto, a formulação de valorações próprias do exercício da

função administrativa, o tribunal deve, no entanto, determinar o conteúdo do acto a

praticar sempre que a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma

solução como legalmente possível

. Nos demais casos, o tribunal deve pelo menos


explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido .

Como refere o artigo 3º, nº 2, do CPTA, os tribunais administrativos também passam

a ter o poder de fixar, quando sejam chamados a condenar a Administração, o prazo

dentro do qual os deveres devem ser cumpridos e, quando tal se justifique para assegurar

o respectivo cumprimento, o poder de impor

directamente aos titulares dos órgãos


responsáveis

uma sanção pecuniária compulsória, isto é, o dever de pagar uma quantia


em dinheiro por cada dia de atraso em relação ao prazo fixado para o cumprimento (cfr.

artº 169º do CPTA).

2.4. Um dos pontos que mais consensualmente eram considerados críticos do nosso

contencioso administrativo era o da tutela cautelar. Com efeito, e sem prejuízo de

algumas evoluções jurisprudenciais recentes, mas ainda assim pontuais, a tutela cautelar

no contencioso administrativo português manteve-se, até aos nossos dias, fundamentalmente

centrada no clássico instituto da suspensão da eficácia dos actos administrativos,

com todas as insuficiências que lhe são reconhecidas. A necessidade de uma reforma do

contencioso administrativo que assegurasse a efectividade da tutela judicial dos

cidadãos perante os poderes públicos era, por isso, especialmente sentida no domínio da

tutela cautelar. Compreende-se, pois, que este seja um dos domínios em que a mudança

é mais profunda e julgo que será aquele em que mais depressa se farão sentir os

efeitos da reforma.

Em traços gerais, limitar-me-ei a referir que, nesta matéria, o artigo 112º do CPTA

introduz uma cláusula aberta pela qual se reconhece a todo aquele que possua

legitimidade para intentar um processo junto dos tribunais administativos o poder de

requerer a adopção de toda e qualquer providência cautelar, antecipatória ou conservatória,

que se mostre adequada a assegurar a utilidade da sentença que pretende obter

nesse processo.

Como refere o artigo 112º, nº 2, as providências cautelares a adoptar podem

designadamente consistir na suspensão da eficácia de actos administrativos ou de normas

regulamentares (cfr. arts. 128º a 130º do CPTA), na admissão provisória em concursos

e exames, na atribuição provisória da disponibilidade de um bem ou da

autorização para iniciar ou prosseguir uma actividade ou adoptar uma conduta, na

regulação provisória de uma situação (designadamente a regulação provisória da

realização de prestações pecuniárias ou do pagamento de indemnizações: cfr. artigo

133º do CPTA) ou na intimação da Administração ou de particulares à adopção ou abstenção

de condutas. O artigo 112º, nº 2, apenas contém, no entanto, um elenco

meramente exemplificativo das providências cautelares que passam a poder ser

adoptadas.

Os novos critérios de que, nos termos do artigo 120º, passa a depender a concessão

das providências cautelares articulam, entretanto, o critério do

periculum in mora com o


do

fumus boni iuris e determinam que o tribunal proceda à ponderação em conjunto dos


vários interesses, públicos e privados, em presença. Por regra, a atribuição de uma

providência cautelar passa, assim, a depender da avaliação, por parte do juiz, sobre, por

um lado, a existência do risco da constituição de uma situação de facto irreversível ou

da produção de prejuízos de difícil reparação para o requerente e, por outro lado, o grau

de viabilidade da pretensão deduzida ou a deduzir no processo principal, tal como ele

resulta de uma apreciação perfunctória sobre o mérito da causa.

De acordo com o artigo 112º, nº 2, o tribunal não deve deixar, em todo o caso, de

ponderar todos os interesses, públicos e privados, em presença para avaliar se os danos

que resultariam da concessão da providência não se mostram superiores àqueles que podem

resultar da sua recusa. Quando for este o caso, o tribunal pode adoptar outra ou outras

providências, em cumulação com aquela que foi requerida, se isso permitir evitar

ou atenuar os inconvenientes que desta resultam. Caso essa solução não seja viável, o

tribunal deve recusar a providência, podendo adoptar outra ou outras, em substituição

daquela, quando essa seja a solução adequada para conciliar os interesses em presença

(cfr. artigo 112º, nº 3).

Acrescente-se apenas que a providência cautelar requerida pelo interessado não pode

ser recusada se for evidente o bem fundado da pretensão deduzida ou a deduzir no

processo principal. Pode dizer-se que, neste caso, o

fumus boni iuris tem uma prevalência


absoluta

, sem necessidade da própria demonstração do periculum in mora, e


também não há, neste caso, lugar à ponderação de interesses a que se refere o artigo

112º, nº 2.

2.5. O último dos planos em que se joga de modo decisivo a efectividade da tutela

judicial é o da execução das sentenças. Ora, o contencioso administrativo português não

previa, até aqui, nenhum verdadeiro processo executivo.

Na verdade, as sentenças de condenação da Administração ao pagamento de

quantias em dinheiro podiam ser objecto de execução segundo os trâmites da penhora e

venda dos bens penhoráveis, nos termos do processo de execução para pagamento de

quantia certa, tal como ele se encontra regulado no Código de Processo Civil. Mas todas

as outras sentenças não tinham um verdadeiro processo de execução que lhes

correspondesse. Uma vez obtida a anulação de um acto administrativo, era possível, em

novo processo declarativo, pedir ao tribunal que decretou a anulação que se

pronunciasse sobre o conteúdo dos actos que a Administração devia adoptar para extrair

as devidas consequências da anulação. Mas não era possível obter nenhuma providência

de execução, destinada a conseguir que essas consequências fossem efectivamente

extraídas.

Com a reforma do contencioso administrativo, pelo contrário, é pela primeira vez

consagrado o poder de os tribunais administrativos adoptarem verdadeiras providências

de execução das suas decisões.

A execução de sentenças de condenação ao pagamento de quantias em dinheiro

passa, assim, a poder ter lugar por três vias alternativas.

A primeira, é a de pedir ao tribunal que decrete a compensação do crédito detido

sobre a Administração com eventuais dívidas que onerem o exequente para com a

mesma pessoa colectiva ou o mesmo ministério. A compensação decretada pelo juiz

funciona como título de pagamento total ou parcial da divida que o exequente tinha para

com a Administração, sendo oponível a eventuais reclamações futuras do respectivo

cumprimento (cfr. artigos 170º, nº 2, alínea a), e 172º, nº 2, do CPTA).

A segunda, é a de solicitar que o tribunal proceda ao pagamento da dívida através da

emissão de uma ordem de pagamento por conta da dotação que deve ser anualmente

inscrita no Orçamento Geral do Estado, à ordem do Conselho Superior dos Tribunais

Administrativos e Fiscais, afecta ao pagamento de quantias devidas a título de

cumprimento de decisões jurisdicionais (cfr. artºs 170º, nº 2, alínea b), e 172º, nºs 3 a 7,

do CPTA).

A terceira, é, para o caso de as outras duas não funcionarem, o recurso às disposições

que, no Código de Processo Civil, regulam os processos de execução para

pagamento de quantia certa, para obter a penhora e venda em hasta pública de bens

pertencentes à entidade devedora (cfr. artº 172º, nº 8, do CPTA).

No domínio das execuções para prestação de factos ou de coisas, destaca-se, pela sua

importância, a introdução do poder de o tribunal providenciar a concretização material

do que foi determinado na sentença seja determinando a entrega judicial de coisas

devidas, seja determinando a prestação por entidades públicas ou por privados de factos

materiais devidos, a expensas da entidade obrigada, se tais factos forem fungíveis

(pense-se no exemplo paradigmático das demolições) , podendo, para o efeito,

recorrer, com as adaptações que forem devidas, à aplicação das disposições que, no

Código de Processo Civil, regulam os processos executivos para entrega de coisa certa e

para prestação de facto fungível (cfr. artº 167º, nº 5, do CPTA).

Também merece, entretanto, realce o poder conferido ao tribunal de emitir um título

capaz de produzir efeitos em substituição do acto administrativo ilegalmente omitido ou

recusado, quando a prática e o conteúdo desse acto forem estritamente vinculados (cfr.

artº 167º, nº 6, do CPTA). E, em ordem a obter o cumprimento das obrigações

infungíveis, a já referida possibilidade de impor sanções pecuniárias compulsórias aos

próprios titulares dos órgãos responsáveis pelo cumprimento (cfr. arts. 168º e 169º do

CPTA).

2.6. Como se vê, a reforma do regime do processo no contencioso administrativo

que irá entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2004 é muito profunda, podendo mesmo

dizer-se que se trata de uma

verdadeira revolução mediante a qual se institui um novo


contencioso administrativo,

que se afasta da primitiva matriz francesa para se aproximar


do modelo alemão da

Verwaltungsgerichtsordnung de 1960. Como é evidente, não


se trata de mudar o direito material. Mas a verdade é que se trata de o efectivar como

nunca antes aconteceu, o que, só por si, conduz a uma profunda transformação do modo

como, na prática, desde sempre se desenvolveram as relações entre a Administração e

os particulares.

A reforma lança, por isso, um desafio de enormes proporções a todos os operadores

do sistema.

Desafio aos juízes, naturalmente. E o Governo realizou, neste domínio, um enorme

esforço, recrutando um número muito significativo de novos juízes, de entre pessoas já

com experiência nos domínios do Direito administrativo e fiscal e a quem foi

ministrada uma formação específica. Trata-se de uma iniciativa absolutamente inédita,

que vai fazer com que, pela primeira vez na História do nosso contencioso

administrativo, existam juízes verdadeiramente especializados em Direito

administrativo e fiscal que é, afinal de contas, a própria razão que justifica a

existência de uma jurisdição administrativa e fiscal.

Mas também desafio às partes, que se vão ver confrontadas com um sistema que, por

ser mais rico e mais dinâmico, se torna mais exigente e, em especial, à

Administração Pública, que se manteve durante demasiado tempo adormecida à sombra

de um sistema que a protegia das consequências das suas insuficiências e deve, por isso,

acompanhar com especial cuidado a primeira fase da aplicação da reforma, por forma a

introduzir nas suas rotinas quotidianas as modificações que o novo modelo possa exigir.

As novas soluções introduzidas vão, em todo o caso, no caminho correcto para

aquela que, tanto quanto sabemos, é a primeira reforma do contencioso administrativo

europeu do século XXI. Nela estão, na verdade, presentes as grandes tendências de convergência

que marcaram a evolução dos diferentes ordenamentos jurídicos europeus nas

últimas décadas do século XX. Trata-se, na verdade, de recuperar o tempo perdido em

relação às evoluções registadas, ao longo dos últimos anos, nos principais países

europeus. Numa palavra, trata-se de fazer, finalmente, corresponder o nosso

contencioso administrativo ao modelo mais consentâneo com os modernos padrões de

relacionamento dos cidadãos com a Administração Pública (e das próprias Administrações

Públicas entre si) que, nas democracias ocidentais, se afirmou após o

termo da Segunda Guerra Mundial.

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