Texto Integral: | Acordam na Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:
1.
1.1. A……….., identificado nos autos, intentou em Janeiro de 2005, no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, contra o Estado Português (Ministério dos Negócios Estrangeiros), acção administrativa comum, sob a forma ordinária, decorrente de responsabilidade civil extra contratual do Réu.
No essencial, essa responsabilidade decorreria de violação pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros do dever de protecção do Autor perante o Estado de Angola.
1.2. Em despacho saneador, aquele Tribunal declarou-se incompetente, em razão da matéria, e absolveu o réu da instância (fls. 149 a 151).
1.3. O Autor interpôs recurso jurisdicional dessa decisão.
1.4. Por acórdão do Tribunal Central Administrativo, foi negado provimento ao recurso jurisdicional e confirmado o despacho saneador recorrido (fls. 285 a 301).
1.5. Desse acórdão, interpôs o Autor o presente recurso de revista, ao abrigo do artigo 150.º, n.º 1, do CPTA, concluindo nas respectivas alegações (na transcrição seguinte, bem como em todas as demais, não se mantém necessariamente toda a formatação das peças transcritas).
«1) É objectivamente simplista o douto Acórdão recorrido ao declarar incompetente em razão da matéria o Tribunal a quo, com base em que os actos de protecção diplomática são, invariavelmente, actos de função política ou de governo, como tal não sindicáveis pelos tribunais administrativos.
2) Por via do Acórdão recorrido, fica o Recorrente privado da tutela jurisdicional efectiva, que lhe é assegurada pelo artº 2.°, al. c), do CPTA, por afloramento do respectivo princípio constitucional.
3) Diz textualmente, de modo abrangente, o n.º 4 do art. 268.º da Constituição da República (princípio da tutela jurisdicional de todas as situações jurídicas subjectivas):
“É garantido aos administrados tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, incluindo, nomeadamente, o reconhecimento desses direitos ou interesses, a impugnação de quaisquer actos administrativos que os lesem, independentemente da sua forma, a determinação da prática de actos administrativos legalmente devidos e a adopção de medidas cautelares adequadas”.
4) Já na redacção do art. 4.º, n.º 1, al. a), do ETAF anterior à Lei n.°13/2002, de 19.02.2002, que excluía da jurisdição administrativa os litígios que tivessem por objecto “actos praticados no exercício da função política e responsabilidade pelos danos decorrentes desse exercício”, era entendimento dominante que, face ao vazio legislativo, havia que usar critérios materiais (a que fazia apelo a C.R. - v.g., arts. 133º, 134.º, 135.º, 141.°, 145.°, 161.°, 163.°, 197.° e 201.°) para ajuizar se determinado acto formalmente político estaria ou não excluído da jurisdição administrativa.
5) Implausível seria que, mais do que um núcleo imune ao julgamento dos tribunais administrativos, todos actos e omissões formalmente políticos mas substancialmente administrativos beneficiassem da mesma imunidade.
6) Os actos diplomáticos podem ser ou não “actos praticados no exercício da função política”.
7) O critério de distinção é material, e não formal, segundo a melhor doutrina.
8) Pelo menos alguns dos chamados actos de protecção diplomática, nomeadamente da pessoa e bens dum cidadão do Estado acreditante junto do Estado acreditatário (ou receptor), não são actos políticos — são, diversamente, actos tutelares de direitos fundamentais ou de direitos subjectivos ou de interesses legalmente protegidos de cidadãos do Estado acreditante, no âmbito da acreditação, que não têm imunidade em relação à jurisdição administrativa.
9) O art. 13º da “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, de 18.04.1961, dispõe:
“1. As funções de uma missão diplomática consistem, inter alia, em:
[...]
b) proteger no Estado acreditatário (receptor) os interesses do Estado acreditante e dos seus nacionais, dentro dos limites estabelecidos pelo Direito Internacional;
[...]”.
10) A tese do douto acórdão recorrido, a ser aceite, implicaria a imunidade dos actos e omissões do MNE como órgão do Estado acreditante no exercício da sua função de protecção diplomática, reconhecida pela supra transcrita al. b) do artº3.° da “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas”, que versa pontualmente sobre a protecção, inclusive das pessoas e bens dos cidadãos do Estado acreditante no Estado acreditatário.
11) No caso, um cidadão nacional do Estado acreditante (português) que adquirira oficialmente o direito ao domicílio residencial e profissional no território do Estado acreditatário é espoliado desse direito por este Estado através duma decisão dita de “expulsão” deste território (para mais, pré-ordenadamente conjurada na ausência [“revelia” provocada] desse cidadão, com respeito zero pelo princípio do contraditório procedimental e com respeito zero pelo principio da motivação ou consubstanciação factual). Perante isto, o Estado acreditante, através da sua Embaixada, ou cumpre a sua função fazendo valer, de modo apropriado e atempado, por actos materializados, inclusive documentados, o direito de protecção diplomática, que lhe foi reconhecido pelo Estado acreditatário no acto da acreditação, independentemente do resultado de tais actos, ou não cumpre nos termos devidos e oportunos estando neste caso a demitir-se da função de protecção diplomática que o vincula perante todos os cidadãos na mesma situação, o que corresponde a o Ministério dos Negócios Estrangeiros se negar como tal.
12) O Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal e a Embaixada de Portugal em Angola, perfeitamente sabedores de que o cidadão ora recorrente foi vítima de acções e omissões traduzidas em falta ou défice de protecção diplomática por parte da Embaixada de Portugal, face à violação por parte do Estado acreditatário de interesses legalmente protegidos do mesmo cidadão (direito ao domicilio e direito ao património) e vítima da violação de regras procedimentais, propugnam, nos presentes autos, a tese da imunidade do Estado acreditante por tais acções e omissões seus - a pretexto de que estas cabem (formalmente, se bem que não materialmente) no desempenho da função política do Estado Português -, o que se reconduz à tese da denegação de justiça no tocante a actos da Administração Pública e, portanto, à própria pantanização da garantia jurisdicional efectiva, consagrada na Constituição.
13) Pelo lado do Estado Angolano, aqui Estado acreditatário, houve, planeadamente montada, uma postura estratégico-táctica de denegação de justiça para com o A., evidenciada em três vícios:
a) falta de contraditório prévio — a qual frustrou ao ora Recorrente a oportunidade legal de conhecer uma denúncia ou acusação que contra si existisse e de se defender da mesma antes de sofrer uma sanção administrativa (o princípio do contraditório, mais do que jurídico, é civilizacional, sendo impreterível à luz de qualquer sistema legal nacional da comunidade internacional);
b) falta de fundamentação ou substanciação factual — a qual inviabilizou a impugnação, por parte do ora Recorrente, da substância do comunicado (este é um deserto de factos, limitados a juízos de avaliação factual, que, obviamente, não suprem a omissão não inocente dos factos omissos implicitamente pressupostos); e
c) falta de presença física (“revelia” provocada) do ora Recorrente — a qual fez precludir qualquer contra-diligência pessoal do ora Recorrente, in loco, fosse esta colimada a descobrir os autores da cabala montada contra o ora Recorrente, fosse colimada a descobrir as causas reais esconsas do comunicado, fosse colimada a desmontar a engenharia do comunicado através de vias alternativas para a Presidência da República.
14) A denegação de justiça, no Estado acreditatário (Angola), manteve-se posteriormente à publicação do comunicado dito de “expulsão”, porquanto:
a) não havia em Angola em 1986 tribunais com jurisdição administrativa, para os quais recorrer contenciosamente da medida de expulsão;
b) o recurso hierárquico gracioso para o Presidente da República era então o único procedimento teoricamente possível para revogação dessa medida (a reclamação para o Procurador Geral da República conduzia também à decisão pelo Presidente da República) ; e
c) na prática, um recurso ou petição dirigido ao Presidente da República pelo cidadão vitimado somente chegaria ao conhecimento da entidade destinatária se entregue em mão por alguém próximo do Presidente ou se provido de cobertura diplomática ou oficial dum Estado estrangeiro (Estado acreditante).
15) Diz o ponto II do sumário do acórdão do STA de 06.03.2007, proferido no P.° n.° 01143/06:
“A função política corresponde à prática de actos que exprimem opções fundamentais sobre a definição e prossecução dos interesses ou fins essenciais da colectividade”.
16) O n.º III do mesmo sumário deixa claro que “relativamente à generalidade dos actos dos Governos” há uma reserva da Administração [...] que está fora dos poderes de sindicabilidade dos tribunais administrativos”, o que faz subentender claramente que tal regime-regra tem excepções (“generalidade” não é o mesmo que “totalidade”).
17) Um passo do mesmo acórdão diz, por sua vez (o negritado é aqui acrescentado):
“A definição do conceito de “acto praticado no exercício da função política”, designadamente no que concerne à sua distinção do acto praticado no exercício da função administrativa, que é a que releva para efeitos de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, não tem tido uma resposta uniforme a nível da jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo tendo vindo a ser adoptado pela jurisprudência mais recente o entendimento de que a função política corresponde à prática de actos que exprimem opções fundamentais sobre a definição e prossecução dos interesses ou fins essenciais da colectividade”.
18) Diz, com interesse para o caso, a “Constituição da República Portuguesa - Anotada” de Gomes Canotilho e Vital Moreira (o negritado foi acrescentado):
“As autoridades administrativas, mesmo no uso de poderes discricionários, não podem prosseguir uma qualquer finalidade, mas apenas a finalidade considerada pela lei ou pela Constituição, que será sempre uma finalidade de interesse público.
Mas a prossecução do interesse público não pode justificar o sacrifício abusivo dos direitos do cidadão; por isso, o respeito destes é um limite da actividade administrativa. A fórmula “direitos e interesses legalmente protegidos” é suficientemente ampla para abranger todas as posições jurídicas dos particulares merecedores de protecção, e não apenas os clássicos direitos subjectivos.
Como toda a actividade pública, a administração está subordinada à Constituição. O princípio da constitucionalidade da administração não é outra coisa senão a aplicação, no âmbito administrativo, do princípio geral da constitucionalidade dos actos do Estado: todos os poderes e órgãos do Estado estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da Constituição.
(...)
Serão inválidos, podendo ser declarados nulos ou ser anulados, os actos administrativos que violem directamente a Constituição”.
19) E diz, com muito cabimento, o “Manual de Direito Constitucional” de Jorge Miranda (o negritado é aqui acrescentado):
“Princípio da constitucionalidade imediata da administração - a administração está vinculada às normas consagradoras de direitos, liberdades e garantias.
Isto significaria em todo o rigor:
1) a administração, nas suas atribuições de execução da lei, só deve executar as leis constitucionais, isto é, as leis conforme aos preceitos constitucionais consagradores de direitos, liberdade e garantias; e
2) a administração, ao praticar actos de execução de leis constitucionais (= leis conforme os direitos fundamentais), deve executá-las constitucionalmente, isto é, interpretar e aplicar estas Leis de um modo conforme os direitos, liberdades e garantias.
No plano prático, as principais questões suscitam-se na interpretação e aplicação de cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados, bem como no exercício de poderes discricionários por parte da administração.
Em qualquer dos casos, a administração deve ponderar todos os pontos de vista de interesse para os direitos, liberdades e garantias relevantes para solução do caso concreto”.
20) Diz, por sua vez, cit. Miguel Galvão Teles (in “Inconstitucionalidade pretérita”. “Nos dez anos da Constituição” (Lisboa) (o negritado é aqui acrescentado):
“A força dirigente dos direitos fundamentais relativamente ao poder executivo impõe-se mesmo perante os tradicionais actos de governo, praticados no exercício de uma função política ou governamental. Se, em geral, é diferente dar operatividade prática ao controlo dos actos políticos, embora seja inequívoca a sua vinculação ao princípio da constitucionalidade - art. 3/3 e ao principio da eficácia directa dos direitos fundamentais - art.18/1 - parece segura a aplicação destes dois princípios, com a consequente possibilidade de controlo judicial, quando um “acto politico” é, na realidade, um acto administrativo directamente violador de direitos fundamentais.
(...)
O princípio da autolimitação judicial e a doutrina das questões politicas (“judicial self-restraint” e “political question doctrin”) é outro dos princípios importados da jurisprudência norte-americana e que fundamentalmente se reconduz ao seguinte: os juízes devem autolimitar-se à decisão de questões junsdicionais e negar a justiciabilidade das questões politicas. O princípio foi definido também pelo juiz Marshall como significado haver certas “questões politicas”, da competência do Presidente, em relação às quais não pode haver controlo jurisdicional. É evidente, porém, como acentua a própria doutrina americana, que a doutrina das questões constitucionais isentas de controlo. Em primeiro lugar, não deve admitir-se uma recusa de justiça ou declinação de competência do Tribunal Constitucional só porque é política e deve ser decidida por instâncias políticas. Em segundo lugar, como já disse, o problema não reside em, através do controlo constitucional, se fazer política, mas sim em apreciar, de acordo com os parâmetros jurídico-materiais da Constituição, a constitucionalidade da política.”
21) “Actos políticos e direitos sociais nas democracias - Um estudo sobre o controle dos actos políticos e a garantia judicial dos direitos sociais” de Sérgio Victor Tamer, diz também com cabimento para o caso (o negritado é aqui acrescentado):
A Constituição para tornar-se uma “força activa “ precisa ter, na “consciência geral” e, nomeadamente na “consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional”, o que HESSE chama de “vontade de constituição”. Do seu correcto manuseio e interpretação depende, pois, em Larga medida, a eficácia dos direitos sociais bem como as condições em garantir-lhes efectividade. É evidente que para isso impõe ultrapassar, por completo, “a visão estática e semântica que tradicionalmente dirige a hermenêutica constitucional”.
Os actos políticos ou de governo, praticados, assim, no exercício de função eminentemente politica, são, via de regra, controláveis pelo Poder Judiciário, mormente quando se afastam do campo de sua ampla discricionariedade para ingressar na vereda tortuosa da arbitrariedade.
Não há, pois, como se conceber qualquer acto, normativo, ou não, que se sobreponha à Constituição. E mais que fique fora do controle judicial. O princípio da supremacia da ordem constitucional impõe esse controle ao judiciário, em qualquer fase processual.
Supremo Tribunal Federal do Brasil: “Todos os actos estatais que repugnem à Constituição expõem-se à censura jurídica - dos tribunais especialmente - porque são írritos, nulos e desvestidos de qualquer validade. A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos e nem ao império dos factos e das circunstâncias. A supremacia de que ela se reveste - enquanto for respeitada constituirá a garantia mais efectiva de que os direitos e as liberdades não serão jamais ofendidas. Ao Supremo Tribunal Federal incumbe a tarefa, magna e eminente, de velar por que essa realidade não seja desfigurada.
Ora, é sabido que os três poderes constitucionais exercem funções políticas distintas, mas Ligadas e amalgamadas por um único.
22) Por sua vez, Cristina Queiroz em “Os actos no Estado de Direito” (Coimbra)-1990, apoiada em Enriço Guicciardi, Hans Kelsen e Rudolf Smend, assinala que os actos políticos tratam-se de:
a) actos imediatamente subordinados à constituição,
b) actos imediatamente essenciais ao funcionamento do seu regime politico,
c) actos absolutamente imprescindíveis à realização e defesa da ordem constitucional no seu conjunto.
23) Lê-se no estudo de Sérgio Victor Tamer “Actos políticos e a garantia judicial dos direitos sociais nas democracias” as considerações acerca dos actos políticos em Portugal:
“... o poder judiciário, por sua corte suprema, também integra o poder político do Estado, dele exigindo-se o exercício de sua função no sistema de “freios e contrapesos” (o poder contém o poder).
(…)
As acções governamentais sujeitam-se à Constituição, subordinam-se aos requisitos formais e materiais nela postos. É crucial, sob este prisma, e como decorrência lógica das funções inerentes ao Poder Judiciário, que cabe a este velar pela constitucionalidade das acções estatais ou, em última analise, a função inafastável de julgar. Logo, não seria desejável que nenhuma questão, mesmo politica, deixasse de passar pelo crivo de sua fiscalização ainda que remotas fossem as probabilidades de violação no tocante aos direitos fundamentais. Essa impossibilidade de julgamento, por parte do Judiciário português, significa uma Lacuna ponderável no arcabouço jurídico estatal.
Em segundo lugar, se a interferência do Poder Judiciário for no sentido de impor limites às interpretações extensivas e distorcidas que levam ao abuso de poder; bem como for na direcção de estabelecer as balizas constitucionais ao acto politico que se questiona —, não há que se falar em interferência indevida de um poder sobre o outro, nomeadamente quando não é dado ao poder que julga, como é evidente, o poder-dever de formular políticas públicas e de desenvolver as linhas prioritárias da acção governamental. Contudo, cremos que não lhe podem faltar a prestação jurisdicional e, excepcionalmente, o necessário juízo de valor ao julgar os actos de governo a si submetidos, haja em vista integrar, como força política que é, um só sistema político-constitucional oriundo da soberania na e indivisível que reside no povo”.
24) Por sua vez, Geórgia Bajer Fernandes de Freitas Porfírio, no seu estudo “Decisões políticas e controle jurisdicional de constitucionalidade: os actos políticos no direito comparado”, acessível no sítio http://www.processocriminalpslf.com.br/decisoes.htm:
Afirma Vergottini que na esfera política há mais liberdade, enquanto a órbita administrativa gira em torno do conceito de discricionariedade, concebido a partir da legalidade. Outra característica diz com a forma de controlo. Enquanto os actos políticos são censuráveis em sede de responsabilidade política, os actos administrativos são impugnáveis perante a jurisdição administrativa. A subtracção da jurisdição do controle dos actos políticos serve, na realidade, a resguardar o ato administrativo com tonalidade política. A denominação “actos políticos” serve, muitas vezes, como subterfúgio ao controle mais acirrado. Os actos políticos devem, então, ser constatados, determinados e compreendidos por um critério restritivo Giuseppe de Vergottini, Diritto Constituzionale, CEDAM, 1997, p. 552.
Resta, ainda, enfatizar que sob a denominação “jurisdição constitucional” a doutrina pretende um tratamento unitário das diversas actividades empreendidas pelos órgãos jurisdicionais no sentido de fazer actuar a norma constitucional. Tal posicionamento, no entanto, desconsidera os diferentes problemas trazidos pela especificidade da tutela: exame de constitucionalidade sobre um ato de império danoso à liberdade de alguém; solução de conflitos entre órgãos superiores do Estado e decisão sobre ilícitos constitucionais cometidos por titulares de cargos políticos. As soluções serão diversas — e mesmo opostas -, dependendo da natureza do processo constitucional visado advertência é de Cappellettí, fundamentado, também, em estudo de Pierandrei, onde afirma, por exemplo, que o tratamento dos ilícitos constitucionais na jurisdição constitucional pode levar à supressão do princípio nullum crimen nulla poena sine praevia lege poenali (Mauro Cappelletti, Proceso, ideologías, sociedad, Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1974, p. 368).
Os actos políticos, conforme Blanco de Morais, são percebidos nas relações institucionais entre os órgãos de poder político. Não interferem directamente na esfera jurídica dos cidadãos. Esta última razão é frequentemente invocada para justificar a ausência de controle jurisdicional da constitucionalidade dos actos políticos.
A ausência de controlo é a característica mais acentuada na doutrina para a individuação do ato politico. Leia-se, neste sentido, Rui Barbosa:
“Actos políticos do Congresso, ou do Executivo, na acepção em que esse qualificativo traduz excepção à competência da justiça, consideram-se aqueles, a respeito dos quais a lei confiou a matéria à discrição do poder, e o exercício dela não lesa direitos constitucionais do indivíduo”.
O resultado da falta de instrumentos de controle, políticos ou jurisdicionais, é a sedimentação de imunidades no exercício da função política, seja quanto ao controle de actos, seja quanto à responsabilização pessoal do titular da função política.
É preciso cuidado, pois, na sedimentação da dimensão do ato político. Rui Barbosa já assinalava que o âmbito da acção política abrangeria a esfera inteira da soberania constitucional. Tal amplitude teria como resultado a reivindicação de imunidade para todo e qualquer ato do Estado. Como consequência, verificar-se-ia a coibição da competência do Judiciário de tutelar direitos individuais e a consideração de todos os actos do Legislativo e do Executivo como manifestação de funções políticas. Assentou, ainda: “Claro está, pois, que, dentre assuntos políticos, mais ou menos propriamente tais, a restrição há de abranger uma limitada classe de casos, e excluir a mais vasta categoria deles; porque aliás a tutela judicial ficaria sendo a excepção, quando é, pelo contrário, a regra..”
25) No caso dos autos, não houve, por parte do Estado acreditante (Estado português) propriamente uma decisão governativa; houve, sim, um acto deficiente (a nota verbal) e sucessivas omissões praticadas pelo chefe da missão diplomática de Portugal em Angola (desde logo, a omissão de insistência pela Embaixada por uma resposta do MRE de Angola e a omissão duma informação pela Embaixada ao ora Recorrente sobre a definitividade do silêncio do MRE de Angola).
26) Esse acto deficiente e essas omissões, além de não serem formalmente um acto governativo, são materialmente não políticos.
27) Esse acto e omissões, tivessem ou não natureza governativa, geraram um crédito de indemnização na esfera jurídica do Recorrente, por estarem inquinados por vícios cuja desconsideração se traduziria em desprezo pela garantia jurisdicional efectiva consagrada na Constituição da República (art. 268º nº4, da CRP).
28) O acto deficiente e as omissões sucessivas configuram, em sede administrativa, uma “ilegalidade” na modalidade de “violação da lei”.
29) Além disso, a violação da garantia jurisdicional efectiva, consagrada no art. 268º nº 4, da CR, abrange os próprios actos políticos ou, pelo menos, alguns deles (o termo “nomeadamente”, que antecede “a impugnação de quaisquer actos administrativos”, deixa subentendido que a garantia jurisdicional efectiva não é exclusiva dos actos administrativos, estendendo-se a actos judiciais, legislativos e políticos - aos actos políticos, quando substancialmente não sejam políticos ou quando pesem menos, na balança dos interesses juridicamente tutelados, do que a garantia jurisdicional efectiva).
30) A causa próxima, decisiva, da dita “expulsão”, que se traduziu na interdição de regresso do Recorrente a Angola por mais de 6 anos, residiu, pois, no papel e desempenho do Recorrente quanto ao projecto da Escola Portuguesa, embora não possa excluir-se, como factor remoto ou menos próximo, o papel do Recorrente como activista da Amnistia Internacional e como advogado e patrocinador de causas e interesses em que se incluem os de portugueses.
31) Seja como for, independentemente do peso do móbil ligado à Escola Portuguesa, o Recorrente, como cidadão português, devia ter sido protegido em termos apropriados em Angola pela sua Embaixada, quer antes da publicação do comunicado, quer depois disso.
32) E, de facto, o Recorrente não foi protegido — foi, isso sim, entregue “de bandeja” aos autores da cabala, qual João Baptista.
33) Esta entrega foi, obviamente, ditada por interesses carreiristas pessoais e outros não mais dignos traduzidos comummente na dita “política de não fazer ondas”, que aliás andou de mãos dadas com a chamada “política de cócoras”, seguida, em geral, pelo Governo Português para com o Governo Angolano durante todo o período oficialmente marxista-leninista do regime de Angola e, em concreto, à data do dito comunicado. Ora,
34) Uma das funções que incumbem aos Estados, no quadro da actividade diplomática, segundo o Direito Internacional Público — “Convenção de Viena sobre relações diplomáticas” — é a “função de protecção”.
35) Textualmente feita a tradução para Português, diz o art°. 3º. da dita Convenção:
“As funções duma missão diplomática consistem, nomeadamente, em:
[...]
b) Proteger no Estado acreditatário (ou receptor) os interesses do Estado acreditante e de seus nacionais, dentro dos limites estabelecidos pelo direito internacional
[...]
36) Como expressivamente diz José Calvet de Magalhães (“Manual Diplomático - Direito Diplomático - Prática Diplomática”, Ed. Bizâncio, 2001, Ed., p. 50):
“A função protectora do diplomata abrange [...] a protecção dos direitos e interesses dos nacionais do Estado que representa. Essa protecção é múltipla e variada e levanta, naturalmente, muitos problemas de carácter essencialmente jurídico. De uma forma muito geral, pode dizer-se que o diplomata protege todos os interesses legítimos de carácter pessoal e patrimonial dos cidadãos do Estado que representa, que se encontrem radicados ou de passagem no país onde o diplomata exerce as suas funções.
37) No que se refere, em particular, aos interesses que dependem da actuação das autoridades locais, essa protecção torna-se necessária apenas quando essas autoridades não se mostram diligentes ou se negam a dar aos referidos nacionais o tratamento a que eles têm direito, de acordo com as leis nacionais e os acordos internacionais. A intervenção do representante diplomático ou consular torna-se, nesse caso, indispensável”.
38) “Indispensável” a intervenção em termos adequados, no caso concreto quanto ao teor da nota e quanto à insistência por resposta.
39) O dito Manual Diplomático explica (pp. 144 a 148 e apêndices n°s 10º a 27°) que são três as “formas de correspondência externa”: “notas formais”, “notas verbais” e “memoranda”.
40) “A nota formal é uma forma de correspondência de certa solenidade reservada a assuntos de importância, e que é dirigida pessoalmente pelo chefe de missão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros do Estado junto do qual se encontra acreditado ou a outros chefes de missão ou vice-versa” (p. 144).
41) Diz o dito Manual:
“O que se pode dizer, apoiando-nos ainda na prática internacional, é que os assuntos que revestem maior gravidade ou melindre internacional são tratados preferentemente em notas formais que constituem uma forma mais solene de correspondência internacional do que as notas verbais” (p.147).
42) Na nota formal dirigida por Embaixador e Ministério, o tratamento é sempre de “excelência” (por extenso) e o Embaixador assina o seu nome (p.144).
43) “A nota verbal é uma forma tradicional e típica dos serviços diplomáticos dos diversos países se corresponderem entre si e que se distingue da nota formal por não ter nem denominação nem assinatura e ser redigida na terceira pessoa, sendo o sujeito a entidade expedidora (Ministério dos Negócios Estrangeiros ou Missão Diplomática). O texto abre com uma fórmula de cortesia que consiste na ‘apresentação de respeitosos cumprimentos’ do expedidor ao destinatário, O texto fecha com nova forma de cortesia semelhante à utilizada nas notas formais:
«O Ministério dos Negócios Estrangeiros (ou a Embaixada de Portugal) aproveita a oportunidade para reiterar à Embaixada de ... (ou ao Ministério dos Negócios Estrangeiros) os protestos da sua mais elevada consideração».
«The Portuguese Embassy avail themselves of this opportunity to renew to the Ministry of Foreign Affairs the assurance of their highest consideration».
«L’ambassade de Portugal saisit l’occasion de renouveler au Ministére des Àffaires Etrangêres l’assurance de sa haute considération».
No final do texto inscreve-se a data e opõe-se o carimbo da entidade expeditora que pode ter ou não uma rubrica.” (fim de transcrição - p. 147).
44) No caso, foi usada, precisamente, uma mera nota verbal, visto que:
6. o remetente é a “Embaixada de Portugal”, não o “Embaixador de Portugal”;
7. o destinatário é o “Ministério das Relações Exteriores”, não o “Vice-Ministro das Relações Exteriores”;
8. não é usado o tratamento de “Excelência”;
9. o texto é redigido na terceira pessoa; e
10. no final, foi aposto o carimbo nem qualquer rubrica.
45) “A nota verbal [...] hoje consiste na forma usual e mais corrente dos serviços diplomáticos dos diversos países se corresponderem entre si” (p. 147).
46) E não faltam autores que limitam as notas verbais a “assuntos de rotina ou de menor importância” (p. 147).
47). O Recorrente, portanto, não mereceu do Embaixador nem uma nota formal, nem sequer uma nota verbal com rubrica.
48) O caso do Recorrente foi tratado pelo Embaixador de Portugal como rotineiro ou de importância menor, servindo a nota apenas para salvar as aparências.
49) Por isso mesmo é que à nota não se seguiu uma segunda nota - o silêncio bastou como resposta.
50) A Embaixada de Portugal e o MNE nada fizeram para obter resposta à nota verbal de 13.08.1986, ficando esta resposta por dar até hoje.
51) Há, pois, um nexo de causalidade adequada entre o comportamento do Embaixador e do MNE e a lesão sofrida pelo Recorrente resultante da medida de “expulsão” publicada em comunicado.
52) Da parte do Embaixador Sr. Dr. B………., houve incumprimento dum dever funcional ou, quando menos, cumprimento defeituoso desse dever.
53) A Embaixada de Portugal e o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, deixando de fazer o que lhes competia e se mostrava adequado, violaram o transcrito artº3°., al. b), da “Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas” e as transcritas disposições do Código Civil.
54) O acto incompleto do Embaixador e as omissões subsequentes (omissão de insistência por uma resposta do MRE de Angola, omissão de encaminhamento do caso por outras vias para a Presidência da República, omissão de comunicação ao Recorrente de que a postura do MRE era de silêncio definitivo, para tomada de outras medidas) são violação da lei administrativa, além de inconstitucionalidade (o acórdão recorrido fez interpretação e aplicação, num sentido materialmente inconstitucional, da al. g) do nº1 do artº4.º do ETAF, na redacção recebida pela Lei nº107-D/2003, de 31.12.2003).
Nestes termos, deverá o presente recurso ser julgado procedente com consequente prolação de acórdão que conheça da competência material do Tribunal Administrativo de 1ª instância, com as consequências legais».
1.6. O Estado Português, nas suas contra-alegações, concluiu:
“1ª – Resultava do anterior ETAF (artº4º al. a)) ficarem excluídos da jurisdição administrativa os recursos e as acções que tinham por objecto actos praticados no exercício da função política. E
2ª – Manter o actual artigo do ETAF a responsabilidade por danos resultantes da função política ficar excluída da jurisdição administrativa, na redacção introduzida pela Lei nº107-D/2003 de 31/12.
3ª – Os actos de protecção diplomática são actos de natureza política e não actos de natureza administrativa;
4ª – Os actos diplomáticos estão fora da actividade administrativa do Estado, motivo pelo qual não se regem pelos princípios gerais que regulam a actividade administrativa do Estado;
5ª – Não respeita aos tribunais administrativos aferir da legalidade dos actos políticos, mas, caber apreciar a responsabilidade civil decorrente dos mesmos aos Tribunais Judiciais com competência cível;
6ª – A declaração de incompetência material do Tribunal Administrativo não priva o recorrente da tutela jurisdicional efectiva;
7ª – A lei não impede que haja responsabilidade civil do Estado pela prática de actos políticos, mas, para conhecer dessa responsabilidade não são competentes os Tribunais Administrativos, mas, os Tribunais Judiciais com competência cível.
Pelo exposto deverá o acórdão ser mantido».
1.7. O recurso foi admitido por acórdão da formação prevista no art. 150.º, n.º 5, do CPTA (fls. 416 a 419).
Cumpre apreciar e decidir.
2.1. O acórdão sob recurso deu por assente os seguintes factos:
1º - O A. é cidadão português;
2º - Em 4/8/1986 foi publicada no “C………..” a ordem de expulsão da República Popular de Angola, do ora recorrente.
2.2. No acórdão de admissão do presente recurso observou-se: «Efectivamente as questões a apreciar no presente recurso passam, designadamente, por apurar se determinados actos ou omissões praticados no exercício da função de protecção diplomática, nomeadamente aqueles a que o Autor faz referência na causa de pedir da acção a que se reporta a decisão recorrida, podem ser integrados na função administrativa do Estado e, apreciados como tal, em acção de responsabilidade civil extracontratual, da competência dos Tribunais administrativos. A resposta às questões suscitadas reveste melindre e complexidade bastantes para justificar a admissão do recurso de revista, sendo certo que não existe, na óptica em que a questão é colocada – designadamente, na coexistência ou não, dentro dos “actos de protecção diplomática” de actos materialmente administrativos e de actos políticos – uma jurisprudência consolidada deste STA sobre a matéria. A decisão do presente recurso, poderá, assim, contribuir para uma maior clarificação na aplicação do direito» (fls. 418).
Deve aqui sublinhar-se, por seu turno, que o que está sob recurso é uma decisão sobre competência.
Por isso, o que se discutirá será feito no estrito limite do necessário para a resolução dessa questão, e vale apenas enquanto interessa a essa questão. Tudo o mais extravasa do seu objecto e âmbito.
O Tribunal Central Administrativo considerou que a actuação do Estado Português que é indicada como causa de pedir releva do exercício da função política. E daí concluiu que a jurisdição administrativa não é a competente para o conhecimento da acção.
Já o recorrente, como resulta das conclusões da sua alegação, entende que o comportamento do Estado em que radica a acção releva do exercício da função administrativa, pelo que é a jurisdição administrativa a competente.
Vejamos.
2.2.1. O que se apresenta como causa de pedir da acção é o facto de Estado Português não ter desenvolvido os esforços diplomáticos que, no entender do Autor, ora Recorrente, deveriam ter sido desenvolvidos.
Segundo ele, face à actuação do Estado de Angola, o Estado Português «limitou-se, como única acção visível junto do aparelho de Estado de Angola, a remeter a nota datada de 13.08.1986, dirigida ao Vice-Ministro» (art. 100.º da petição inicial).
E o A, depois de indicar «que são três as “formas de correspondência externa”»: «notas formais», «notas verbais» e «memoranda» (art. 116.º), articulou:
«O A, portanto, não mereceu do embaixador nem uma nota formal, nem sequer uma nota verbal com rubrica» (art. 124º);
«O caso do A foi tratado como rotineiro ou de importância menor, servindo a nota apenas para salvar as aparências» (art. 125.º);
«Em suma: a Embaixada de Portugal e o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal ficaram, por omissão e comissão, muitíssimo aquém do que lhes competia na defesa dos interesses do A» (art. 128.º).
Esta é a essência da causa de pedir, no que respeita ao comportamento do réu.
Afigura-se que esse comportamento, a acção e omissão imputadas ao Estado português relevam do puro campo da diplomacia, sem exercício de qualquer poder administrativo, sem exercício de qualquer dever administrativo.
Essa natureza não é desvirtuada por a alegada actividade ou falta dela se inserir na defesa ou protecção imediata de um cidadão português.
É que, na defesa dos seus cidadãos cada Estado pode utilizar diversos meios.
Mas os meios activados ou omitidos que vêm imputados ao Réu são meios do campo puro da actividade diplomática.
O que vem alegado reporta-se a actividade do Estado que, em nome próprio, se dirige ao outro Estado, por isso, no âmbito de manifestação de posição política, no quadro das relações internacionais. O que o Autor, ora recorrente, assaca ao Estado é, no essencial, não ter usado suficientemente os meios de pressão político/diplomática que estariam ao seu dispor.
Não interessa, aqui, proceder a uma teoria geral sobre o que é actuação política.
Não se deixará, no entanto, e a mero título de exemplo, de recordar o seguinte passo do Manual de Processo Administrativo, de Mário Aroso de Almeida, 2010, pág. 187, que se adequa à situação dos autos: «Sempre seguindo a lição de Afonso Rodrigues Queiró, é, entretanto, possível agrupar os actos praticados no exercício da função política em duas grandes categorias: 1ª Actos “respeitantes à ‘política externa’ do Estado ou às suas relações exteriores e à segurança externa: […], apresentação e troca de notas, […], actos de protecção diplomática e consular de nacionais no estrangeiro […]».
Em suma, a actuação/omissão que se apresenta como causa de pedir na acção é, pelo menos no essencial, uma actuação/omissão política, no quadro do artigo 197.º, n.º 1, j), da Constituição da República.
Por isso, considera-se que o acórdão recorrido não errou quando assim caracterizou a causa de pedir.
2.2.2. A caracterização da causa de pedir não significa, no entanto, que esteja resolvido o problema da competência.
Na verdade, a questão que se coloca, agora, é se o acórdão recorrido também esteve bem quando retirou daquela caracterização a incompetência material dos tribunais administrativos.
Vejamos.
2.2.2.1. O Tribunal dos Conflitos tem vindo a decidir que “À face do ETAF de 2002, cabe aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objecto questões em que haja lugar a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público, independentemente de lhes ser aplicável um regime de direito público ou de direito privado” (ver, com indicação de outras decisões, o acórdão de 17.6.2010, conflito n.º 30/09).
Especificamente sobre a responsabilidade civil resultante do exercício da função política não se detecta jurisprudência consolidada; e na doutrina não existe unanimidade.
No sentido da competência radicar nos tribunais judiciais pode ver-se, nomeadamente:
Mário Esteves de Oliveira, Rodrigo Esteves de Oliveira, em Código de Processo nos Tribunais Administrativos Volume I Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, Almedina 2004, em anotação XXX do artigo 4.º do ETAF;
Vieira de Andrade, em Justiça Administrativa, 10ª edição, em Nota, pág. 117.
No sentido da competência dos tribunais administrativos pode ver-se, nomeadamente:
Jorge de Sousa, “Poderes de cognição dos tribunais administrativos relativamente a actos praticados no exercício da função política”, Julgar, n.º 3,
Vasco Pereira da Silva, O contencioso administrativo no divâ da psicanálise, Almedina, 2005, expressamente em págs. 482, 483, nas quais, entre o mais, qualifica de “literalistas” a posição de Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira.
Mário Aroso de Almeida, Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3ª edição revista, 2010, em particular a nota 13.
Mário Aroso de Almeida, no Manual de Processo Administrativo, supra identificado, em particular, na nota 101, em que faz expressa crítica à supra referida nota de Vieira de Andrade.
Na presente circunstância, interessa notar que nas obras citadas Justiça Administrativa e Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, há referência expressa ao acórdão do Tribunal Central aqui sob recurso. A referência naquela primeira obra é, no entanto, de mera concordância, sem desenvolvimento. Já a referência na segunda tem explicação, com que se concorda, e que se reproduz parcialmente:
«Ao contrário do que, a nosso ver, erroneamente se entendeu no acórdão do TCA Sul de 21 de Maio de 2009, Processo n.º 3775/08, a jurisdição administrativa abrange todas as modalidades de responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, o que não pode deixar de incluir a eventual responsabilidade pelo exercício da função política. Em sentido contrário não aponta, a nosso ver, a circunstância de a alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF não fazer referência expressa a esta função do Estado na enumeração meramente ilustrativa a que procede na parte final. Com efeito, quando o preceito fala da ‘responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante da função jurisdicional e da função legislativa’, não se pode deixar de entender que pretende cobrir todas as modalidades de responsabilidade, o que inclui, não apenas as duas modalidades expressamente mencionadas (a função jurisdicional e a função legislativa), mas também as outras duas modalidades não referidas: a função política e a própria função administrativa».
2.2.2.2. Afigura-se, aqui, de sublinhar o objectivo da Proposta de Lei n.º 102/IX, que veio a dar origem à Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro, que alterou a redacção inicial do ETAF, da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro:
«A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado».
Apesar disso, o elemento que principalmente tem sido apontado por quem defende que o conhecimento de responsabilidade civil emergente do exercício da função política cabe aos tribunais judiciais é o de que face à redacção inicial do ETAF, da Lei n.º 13/2002, se verificou o desaparecimento da referência à função política.
Relembre-se a redacção inicial do artigo 4.º, n.º 1, g): «Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça».
E a redacção actual: «Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa».
A ter em conta, apenas, estas duas redacções poder-se-ia entrever, como o fizeram logo Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, e o acórdão recorrido julgou, que tinha existido a intenção de retirar dos tribunais administrativos os litígios de responsabilidade decorrente do exercício da função política.
Entende-se que será ir longe de mais.
O elemento histórico foi detalhadamente observado por Jorge de Sousa, no local citado.
Aqui, justifica-se uma indicação suplementar sobre esse elemento histórico.
Na verdade, o que acontece é que exactamente já na Proposta de Lei na qual se afirmava, como vimos, o objectivo de exclusividade de competência dos tribunais administrativos, a mesma alínea g) não continha, apesar desse objectivo, a referência à função política. Mais, só continha a referência expressa à administração da justiça. Relembre-se, por isso, também, o texto constante dessa Proposta de Lei:
“Questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, nos termos da lei, bem como a resultante do funcionamento da administração da justiça”.
Quer dizer, para a Proposta de Lei não havia qualquer contradição em afirmar o objectivo de exclusividade de jurisdição e, ao mesmo tempo, retirar as referências expressas à função política e também à função legislativa que constavam do texto inicial do ETAF.
Depois, com a Lei 107-D/2003, acabou, ainda, por ficar diferente. Nem se manteve o texto inicial do ETAF, nem se adoptou o texto da Proposta de Lei, antes se adoptou uma redacção própria.
Desse histórico, resulta que nada desmente a intenção de adscrição completa dos litígios de responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito público à jurisdição administrativa.
Afinal, a redacção dada pela Lei n.º 107-D/2003 compreende-se no quadro de maior cautela, não já quanto à competência mas, sim, quanto à própria existência de responsabilidade política.
Por isso se introduziu “questões que nos termos da lei”, e se retirou a referência expressa à função política.
Em nosso julgamento, tudo teve a ver com o cuidado de não comprometimento do legislador do ETAF com a existência da própria responsabilidade, matéria, aliás, objecto de discussão em sede dos trabalhos preparatórios conducentes à Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e sobre a qual, como prevenimos, não há lugar a tomar posição neste estrito quadro de julgamento sobre a competência.
Deve considerar-se, assim, que, no mínimo, o elemento histórico não tem a repercussão que é defendida pelos que sustentam a exclusão da jurisdição administrativa para o conhecimento das acções de responsabilidade em que a causa de pedir se centra no exercício da função política.
E, no mais, salvo problema de constitucionalidade, não há qualquer razão para considerar excluída da cláusula geral com que se inicia a própria alínea g) «Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público».
2.2.2.3. Ora, restando o problema de constitucionalidade, acompanham-se as considerações produzidas por Jorge de Sousa no local citado (a transcrição seguinte não contém as respectiva notas de rodapé):
«[…] será necessário dissipar as dúvidas de constitucionalidade que implica a extensão do âmbito da jurisdição administrativa à apreciação das acções por danos resultantes do exercício da função política. Com efeito, o art. 212.º, n.º 3, da CRP, estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais» o que pode ser interpretado como proibindo a atribuição a esses tribunais pelo legislador ordinário de competências em outras matérias. ( )
No entanto, tem sido também defendido pela doutrina que a atribuição constitucional de competência aos tribunais administrativos e fiscais para a apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais apenas exige que não seja descaracterizado um modelo em que esses tribunais sejam os especialmente para essas matérias, não afastando a possibilidade de se preverem excepções, tanto no sentido de atribuição de competências a outros tribunais para o conhecimento dessas matérias como no da atribuição aos tribunais administrativos e fiscais de competência para a apreciação de litígios de outra natureza, em casos pontuais com alguma justificação. ( )
Desta perspectiva, seria constitucionalmente admissível a atribuição aos tribunais administrativos da competência para a apreciação das acções de responsabilidade civil extracontratual por actos da função política, pois há justificação para tal, derivada, por um lado, do facto de tal extensão facilitar aos particulares a obtenção de tutela para os seus direitos, pois não a verão diferida por questões de jurisdição que a prática demonstra serem, por vezes, de difícil resolução (), e por outro lado, os tribunais administrativos serem os especialmente vocacionados para a apreciação da responsabilidade emergente dos actos de direito público, a que se reconduzem os actos praticados no âmbito da função política. () ()
A esta luz, a inclusão na jurisdição administrativa das acções para apreciação da responsabilidade civil extracontratual emergente de actos praticados no âmbito da função política será também a solução mais acertada, que se deve presumir ter sido legislativamente adoptada (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Assim, deixará de ter interesse, para este efeito de responsabilidade civil extracontratual, destrinçar a função política da função administrativa».
E, ainda a mero título exemplificativo, mas concordando-se, interessa mencionar a seguinte passagem da anotação IV do artigo 212.º, em Jorge Miranda - Rui Medeiros Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, Coimbra editora 2007: «justifica-se a atribuição, em bloco, aos tribunais administrativos do poder de dirimir os litígios em zonas de fronteira em que as questões colocadas são predominantemente de natureza administrativa, mas há dúvidas de qualificação ou zonas de intersecção entre as matérias administrativas e as restantes Vieira de Andrade, op, cit., p. 114). É o que sucede, por força do disposto no artigo 4.º, n.º 1, alíneas c), e), g) e l) do ETAF, com a atribuição aos tribunais administrativos do poder de julgar a esmagadora maioria dos litígios respeitantes aos contratos celebrados por entidades públicas e a totalidade dos litígios relativos à responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas e à prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos por parte de entidades públicas (em geral sobre os dois aspectos mencionados, cf. Diogo Freitas do Amaral/Mário Aroso de Almeida, Grandes linhas da reforma do contencioso administrativo, 3ª edi., Coimbra, 2004, pág., 25 segs)" (observe-se que, conforme Nota Prévia da obra, a autoria da anotação é de Mário Aroso de Almeida).
No quadro exposto não se detecta problema de constitucionalidade, devendo assumir-se como justificada também constitucionalmente a opção pela submissão à jurisdição administrativa da totalidade dos litígios relativos à responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas.
E, volte a frisar-se, da presente decisão não pode retirar-se qualquer conclusão quanto à existência da responsabilidade que se reclama na acção. Essa é matéria exterior ao problema da competência. O que se decide é que, haja ou não essa responsabilidade, seja em abstracto, seja em concreto, são os tribunais administrativos os competentes para conhecer da acção.
3. Com os fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso, julgando-se a jurisdição administrativa competente para a acção.
Custas pelo recorrido Estado, pelo mínimo.
Lisboa, 2 de Novembro de 2011. – Alberto Augusto Oliveira (relator por vencimento) – Fernanda Martins Xavier e Nunes – Américo Joaquim Pires Esteves (com a declaração que entendo que os actos e omissões em que o recorrente fundamenta a sua causa de pedir na presente acção se inserem na função administrativa do Estado). |