Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
Processo: | 017/07 |
Data do Acordão: | 23-01-2008 |
Tribunal: | CONFLITOS |
Relator: | POLÍBIO HENRIQUES |
Descritores: | CONFLITO DE JURISDIÇÃO RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO COMPANHIA DOS CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES REFER EP |
Sumário: | I - A “Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.” (CP) e a “Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P.” (REFER) são pessoas colectivas de direito público, por expressa determinação do direito positivo. II - Nos termos previstos no art. 4º/1/g) do ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002 de 19.2, compete ao juiz administrativo conhecer de acção instaurada contra aquelas entidades, para efectivação de responsabilidade civil extracontratual emergente da colisão de um comboio com um veículo automóvel, numa passagem de nível da linha do Leste. III - Cabe, igualmente, ao juiz administrativo, de acordo com o disposto no art. 4º/1/h) do ETAF, conhecer da questão da responsabilidade civil extracontratual dos servidores daquelas mesmas pessoas colectivas de direito público, por danos ocorridos no exercício das suas funções e por causa delas, qualquer que seja o regime do seu trabalho e qualquer que seja a natureza da actividade causadora do dano. |
Nº Convencional: | JSTA00064824 |
Nº do Documento: | SAC20080123017 |
Data de Entrada: | 05-09-2007 |
Recorrente: | A... NO CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO ENTRE O TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE ABRANTES E O TAF DE LEIRIA |
Recorrido 1: | * |
Votação: | UNANIMIDADE |
Meio Processual: | CONFLITO. |
Objecto: | NEGATIVO DE JURISDIÇÃO TRIBUNAL JUDICIAL DE ABRANTES - TAF LEIRIA. |
Decisão: | DECL COMPETENTE TAF LEIRIA. |
Área Temática 1: | DIR ADM CONT - RESPONSABILIDADE EXTRA. |
Área Temática 2: | DIR JUDIC - ORG COMP TRIB. |
Legislação Nacional: | CONST97 ART212 N3 ART214 N3 ART271 N1. ETAF 02 ART4 N1 G H N3. ETAF84 ART51 N1 H. DL 109/77 DE 1977/03/25 ART1. DL 104/97 DE 1997/04/29 ART2 N1 ART32 N1. CCIV66 ART7 N3. DL 558/99 DE 1999/12/17 ART23 N1 N2. |
Jurisprudência Nacional: | AC TC 372/94 IN DR IIS DE 1994/09/03.; AC TC 347/97 IN DR IIS DE 1997/07/25.; AC TC 284/2003 DE 2003/05/29.; AC STAPLENO PROC40247 DE 1998/02/18.; AC STA PRC45633 DE 2000/06/14.; AC STA PROC45636 DE 2001/01/24.; AC STA PROC45431 DE 2001/02/20.; AC STA PROC1329/02 DE 2002/10/31.; AC CONFLITOS PROC18/06 DE 2006/10/26.; AC CONFLITOS PROC13/07 DE 2007/09/26. |
Referência a Doutrina: | GOMES CANOTILHO E OUTRO CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA 3ED ANOTAÇÃO IV AO ART214. MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA E OUTRO CÓDIGO DE PROCESSO NOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS VI PAG21 - PAG25 PAG60. FREITAS DO AMARAL E OUTRO GRANDES LINHAS DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO PAG21 PAG32. VIEIRA DE ANDRADE A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA 4ED PAG107 PAG125. SÉRVULO CORREIA IN ESTUDOS EM MEMÓRIA DO PROF CASTRO MENDES PAG 254. RUI DE MEDEIROS BREVÍSSIMOS TÓPICOS PARA UMA REFORMA DO CONTENCIOSO DA RESPONSABILIDADE IN CJA N16 PAG35 PAG36. JORGE MIRANDA OS PARÂMETROS CONSTITUCIONAIS DA REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO IN CJA N24 PAG3. REFORMA DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO VIII PAG14. SÉRVULO CORREIA DIREITO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO PAG714. |
Aditamento: | |
Texto Integral: | Acordam no Tribunal de Conflitos: 1. RELATÓRIO 1.1. A…, viúva, residente na Herdade do …, por si e como legal representante dos seus filhos menores B…, C… e D…, requer a resolução de conflito negativo de jurisdição entre o Tribunal Judicial da Comarca de Abrantes e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria. São os seguintes os fundamentos essenciais do requerido: 1º A requerente, em seu nome e no dos seus representados, propôs em 13 de Julho de 2006, no Tribunal Judicial da Comarca de Abrantes, acção com processo ordinário contra E…, CP – Caminhos de Ferro Portugueses, EP, Rede Ferroviária Nacional – Refer, E.P. (Pº 914/06.4TBABT-3º Juízo). 2º A causa de pedir dessa acção foi um acidente de viação ocorrido em 29 de Setembro de 2005 na Freguesia de Bemposta, da Comarca de Abrantes, numa passagem de nível da Linha do Leste, pertencente à 3ª Ré, com um comboio pertencente à 2ª Ré e conduzido pelo 1º R. 3º O referido comboio colidiu com o auto-ligeiro …, pertencente à A., 4º Sendo conduzido pelo seu marido F… – que faleceu como consequência directa e necessária das lesões corporais causadas pela dita colisão. 5º O pedido foi da indemnização dos danos provocados pelo acidente, no montante global de € 1 734 500,00. 6º Por douto despacho de 24 de Outubro de 2006, o Meritíssimo Juiz do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Abrantes julgou este Tribunal incompetente, em razão da matéria, por considerar que tal competência assiste aos Tribunais Administrativos – doc. nº 1 7º No seguimento dessa decisão, a requerente, em seu nome e nos dos seus representados, em Novembro seguinte, propôs a referida acção, nos precisos termos da que fora instaurada no Tribunal Judicial de Abrantes, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (Pº nº 1378/06.8BELRA) 8º Mas, por despacho de 24 de Maio de 2007, a Meritíssima Juíza do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria julgou este Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da acção, por entender que tal competência é dos Tribunais comuns – doc. nº 2. Assim, 9º Verifica-se um conflito de jurisdição negativo – nos termos dos arts. 115º do CPC e 59º § 2º do Decreto nº 19 243, de 16 de Janeiro de 1931. 10º As decisões dos referidos tribunais, que declinaram as respectivas competências, transitaram em julgado. 11º O tribunal competente em razão da matéria é necessariamente um daqueles que declinou tal competência. 1.2. A Exmª Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer, nos seguintes termos: “A nosso ver o presente conflito de jurisdição deverá ser resolvido atribuindo-se a competência para a apreciação da acção em causa à jurisdição administrativa. Não nos parece que a questão da competência possa ser resolvida com recurso ao regime das empresas públicas, contido no DL 558/99, de 17.12, ou, até mesmo, com apelo ao art. 32º dos Estatutos da REFER, EP, que constituem o anexo I ao DL 104/97, de 29.04, no que toca à ré REFER, EP. As rés Caminhos de Ferro Portugueses, EP e rede Ferroviária Nacional -REFER, EP, são pessoas colectivas de direito público, de harmonia com o art. 1º do DL nº 109/77, de 25.03 e com o art. 2º do DL nº 104/97, de 29.04, respectivamente. Nos termos do art. 4º, nº 1, alínea g) do ETAF actualmente em vigor compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa. Cremos que o critério consagrado neste normativo deverá prevalecer sobre aqueles regimes especiais (art. 7º, nº 3, 2ª parte, do CC). Parece-nos não haver dificuldade em reconhecer ter sido vontade do legislador resolver de uma vez por todas, através de um critério de ordem subjectiva e a partir da entrada em vigor do novo ETAF, o problema da competência relativamente às acções que envolvam pessoas colectivas de direito público. É o que se extrai da seguinte passagem da exposição de motivos (in Diário da Assembleia da República, II Série A, de 2001.07.18, p. 48): … dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios em que, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns. A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. Por outro lado, à luz do art. 10º, nº 7, do CPTA, o primeiro réu pode ser julgado na mesma acção: logo, neste caso, também pelos tribunais administrativos. Nestes termos, compete à jurisdição administrativa o conhecimento da presente acção; é este o parecer que nos cumpre emitir”. Colhidos os vistos dos Exmºs Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos, vêm os autos à sessão. 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1.Está em questão saber qual é o tribunal competente para conhecer de acção de responsabilidade civil extracontratual emergente de um acidente ocorrido em 29 de Setembro de 2005, na freguesia de Bemposta, da comarca de Abrantes, numa passagem de nível da Linha do Leste, que consistiu na colisão de um comboio com o auto ligeiro … e da qual resultou a morte do condutor deste, F…. A acção foi instaurada contra o condutor do comboio, contra a “CP- Caminhos de Ferro Portugueses, E.P.”, proprietária do comboio e contra a “ Rede Ferroviária Nacional – REFER,E.P.”, gestora da linha férrea. Estão em conflito um tribunal da jurisdição administrativa – Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria – e um tribunal da jurisdição comum – Tribunal Judicial da comarca de Abrantes. O primeiro julgou não ser materialmente competente para conhecer da acção, com o seguinte discurso justificativo: “ O art. 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, estabelece o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal. No âmbito das acções de responsabilidade, e nos termos do disposto nas alíneas h) e i) do art. 4º do ETAF, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal apenas a apreciação de litígios que tenham por objecto a efectivação da responsabilidade civil extracontratual: i) dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos ii) dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas (regulado pelo DL nº 48 051, de 21.11.1967) Quer o 1º Réu, quer as 2ª e 3º RR (tendo estas a natureza de empresas públicas, como resulta dos respectivos estatutos, aprovados, respectivamente pelos DL nº 104/97, de 29.04 e DL nº 109/77, de 25.03, com as posteriores alterações) respondem civilmente perante terceiros pela prática de actos ou omissões ilícitas que ofendam os direitos deste, nos termos gerais de direito (cfr. art. 7º, nº 1 do DL 558/99, de 17 de Dezembro, que estabelece o regime jurídico do sector empresarial do Estado e das empresas públicas, conjugado com o art. 18º, nº 2 do mesmo diploma). A presente acção não é, pois, enquadrável em nenhuma das supra aludidas disposições do art. 4º do ETAF, porquanto a nenhum dos RR. é aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas públicas”. O segundo, por sua vez, julgou materialmente incompetente o Tribunal Judicial da Comarca de Abrantes, dizendo, no essencial, que: (i) o art. 4º, nº 1 do ETAF dispõe que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: […] g) questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”; (ii) compete, assim, à jurisdição administrativa apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual da Administração Pública, independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma actuação de gestão pública ou de uma actuação de gestão privada; (iii) “in casu, a demanda tem como fundamento, além do mais, a responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas de direito público – REFER, E.P. (artigo 2º, nº 1 do Decreto-Lei nº 104/97, de 29 de Abril) e CP, E.P. (Decreto-Lei nº 109/77, com a redacção do Decreto-Lei nº 116/92, de 20 de Junho)”; (iv) “assim, à luz da pretensão do autor e da qualidade da 2ª e 3ª RR (CP, E.P. e REFER, E.P.), é o tribunal administrativo o competente para conhecer deste pleito. E tal competência não pode ser negada pelo facto de nesta acção ser demandado um particular (1º R), uma vez que “podem ser demandados particulares e concessionários, no âmbito das relações jurídico-administrativas que os envolvam com entidades públicas ou com outros particulares” (artigo 10º, nº 7 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.” Vejamos. 2.2. Apreciando, convocamos, em primeiro lugar a lei constitucional que prescreve (art. 212º/3 da CRP) o seguinte: “compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”. Deste modo, o artigo consagra uma reserva material de jurisdição atribuída aos tribunais administrativos. E o primeiro problema que a sua interpretação suscita é o de saber se a reserva é absoluta, quer no sentido negativo, quer no sentido positivo, implicando, por um lado, que os tribunais administrativos só poderão julgar questões de direito administrativo e, por outro lado, que só eles poderão julgar tais questões. Na Doutrina, embora com vozes dissonantes a defender a natureza absoluta ou fechada da reserva, significando que o legislador ordinário só pode atribuir o julgamento de litígios materialmente administrativos a outros tribunais se a devolução estiver prevista a nível constitucional GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, in Constituição Anotada, 3ª e., 1993, anotação IV ao art. 214º e/ou que só são admissíveis os desvios impostos por um obstáculo prático intransponível, de ordem logística, ligado à insuficiência da rede de tribunais administrativos e justificadas pela necessidade de salvaguardar o princípio da tutela judicial efectiva que ficaria comprometida pelo “entupimento” e irregular funcionamento daqueles se, porventura, o legislador ordinário, seguindo a via constitucional, atribuísse, de imediato, aos tribunais administrativos o julgamento de todos os litígios de natureza administrativa MÁRIO ESTEVES DE OLIVEIRA e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA, in “Código de Processo Nos Tribunais Administrativos”, Vol. I, pp. 21-25 DIOGO FREITAS DO AMARAL e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, pp. 21 e segs, é dominante a interpretação com o sentido de que a cláusula consagra uma reserva relativa, um modelo típico, que deixa à liberdade do poder legislativo a introdução de alguns desvios, aditivos ou subtractivos, desde que preserve o núcleo essencial do modelo de acordo com o qual o âmbito regra da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material. Neste sentido, por exemplo: VIEIRA DE ANDRADE, in “ A Justiça Administrativa”, 4ª ed., p. 107 e segs. SÉRVULO CORREIA, in “Estudos em Memória do Prof. Castro Mendes, “ 1995,p. 254 RUI MEDEIROS, “Brevíssimos tópicos para uma reforma do contencioso de responsabilidade”, in CJA, nº 16, pp. 35 e 36. JORGE MIRANDA, “ Os parâmetros constitucionais da reforma do contencioso administrativo”, in CJA, nº 24, p. 3 e segs. Esta última linha de leitura, que não é repelida pelo texto (que não diz explicita e inequivocamente que aos tribunais administrativos competem apenas questões administrativas e que estas só a eles estão atribuídas) e assenta na ideia de que a finalidade principal que presidiu à inserção da norma constante do nº 3 do art. 214º foi a abolição do carácter facultativo da jurisdição administrativa e não a consagração de uma reserva de competência absoluta dos tribunais administrativos, tem sido acolhida pela jurisprudência do Tribunal Constitucional [vide, entre outros, os acórdãos nº 372/94 (in DR II Série, nº 204, de 3 de Setembro de 1994), 347/97 (in DR II Série, nº 170, de 25 de Julho de 1997) e 284/2003, de 29 de Maio de 2003] Este entendimento é, também o da jurisprudência maioritária do STA (vide, por exemplo, os acórdãos do Pleno de 1998.02.18- recº nº 40 247 e da Secção de 2000.06.14- rec. nº 45 633, de 2001.01.24 – rec. nº 45 636, de 2001.02.20 – rec. nº 45 431 e de 2002.10.31 – rec. nº 1329/02). Não se vê razão para divergir desta interpretação. Consideramos, pois, que o legislador ordinário, desde que não descaracterize o modelo típico, segundo o qual a regra é que o âmbito da jurisdição administrativa corresponde à justiça administrativa em sentido material, pode sem ofensa à lei constitucional, alargar o perímetro da jurisdição dos tribunais administrativos a algumas relações jurídicas não administrativas. 2.2. Essa foi, igualmente, a leitura do legislador do actual ETAF que, na exposição de motivos da Proposta de Lei que lhe deu origem (publicada in “Reforma do Contencioso Administrativo”, vol. III, p. 14) e que passamos a transcrever, na parte que interessa: “(…) Neste quadro se inscreve a definição do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que, como a Constituição determina, se faz assentar num critério substantivo, centrado no conceito de "relações jurídicas administrativas e fiscais". Mas sem erigir esse critério num dogma, uma vez que a Constituição, como tem entendido o Tribunal Constitucional, não estabelece uma reserva material absoluta, impeditiva da atribuição aos tribunais comuns de competências em matéria administrativa ou fiscal ou da atribuição à jurisdição administrativa e fiscal de competências em matérias de direito comum. A existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado. Neste sentido, reservou-se, naturalmente, para a jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios respeitantes ao núcleo essencial do exercício da função administrativa, com especial destaque para a atribuição à jurisdição administrativa dos processos de expropriação por utilidade pública (…). Estando ainda em causa a aplicação de um regime de direito público, respeitante a questões relacionadas com o exercício de poderes públicos, pareceu, entretanto, adequado atribuir à jurisdição administrativa a competência para apreciar as questões de responsabilidade emergentes do exercício da função político-legislativa e da função jurisdicional. Ao mesmo tempo, e dando resposta a reivindicações antigas, optou-se por ampliar o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos em domínios nos quais, tradicionalmente, se colocavam maiores dificuldades no traçar da fronteira com o âmbito da jurisdição dos tribunais comuns. A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. (…)” (negrito nosso). É pois, com este alcance que, em sintonia com a intenção do legislador, deve interpretar-se a norma do art. 4º/1/g) do ETAF que atribui ao juiz administrativo competência para conhecer das “questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa”. Temos, assim, que, com a entrada em vigor do actual ETAF, de acordo com a regra geral do art. 4º/1/g) e salvo as excepções subtractivas contidas no nº 3 do mesmo preceito legal, passou a ser da competência do juiz administrativo apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, quer relativas a relações jurídicas administrativas, quer referentes a relações extra-administrativas, independentemente de serem regidas por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. Ou dito de outro modo, nas palavras de Sérvulo Correia, Direito do Contencioso Administrativo, p. 714 o ETAF “privilegiou um factor de incidência subjectiva. Independentemente da natureza jurídica pública ou privada da situação de responsabilidade, esta cabe no âmbito da jurisdição exercida pelos tribunais administrativos só porque é pública a personalidade da entidade alegadamente responsável ou da entidade em que se integram os titulares de órgãos ou servidores públicos” Significa isto que a qualificação entre actos de gestão pública e actos de gestão privada que, à luz do art. 51º/1/h) do anterior ETAF, aprovado pelo DL nº 129/84, de 27 de Abril, era critério operativo da repartição de competências entre os tribunais da ordem administrativa e os tribunais da ordem comum, nas “acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos” passou a ser irrelevante para este efeito. O interesse nessa distinção passou a estar confinado, apenas, ao direito material. O juiz administrativo não fica dispensado de proceder à qualificação da relação controvertida, visto que da natureza da origem da responsabilidade – acto de gestão pública ou acto de gestão privada – dependerá a determinação do regime substantivo aplicável. A interpretação ora defendida coincide com o entendimento da Doutrina Freitas do Amaral e Aroso de Almeida, in “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, p. 32; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, “Código de Processo Nos Tribunais Administrativos e Fiscais”, p. 59; Sérvulo Correia, in “Direito do Contencioso Administrativo”, p. 714 e foi já perfilhada por este Tribunal dos Conflitos nos acórdãos de 2006.10.26 – conflito 18/06 e de 2007.09.26 – conflito nº 13/07. 2.2.3. Dito isto, importa saber, porque é o factor subjectivo determinante, se é pública a personalidade das pessoas colectivas demandadas. Nos termos do art. 1º do DL nº 109/77, de 25 de Março, “a empresa pública denominada Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, nacionalizada pelo Decreto-Lei nº 205-B/75, de 16 de Abril, é uma pessoa colectiva de direito público …”. Por seu turno, de acordo com o disposto no art. 2º/1 do DL nº 104/97, de 29 de Abril, “a REFER, E.P., tem a natureza de pessoa colectiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira e de património próprio estando sujeita à tutela dos Ministros das Finanças e do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território”. E, apesar da sua índole empresarial, a natureza da sua personalidade não se modificou, com a entrada em vigor do DL nº 558/99, de 17 de Dezembro que fixou o regime do sector empresarial do Estado. Este diploma prevê a existência de pessoas colectivas de direito público, com natureza empresarial (art. 23º/1), submete-as a um regime jurídico específico (capítulo III) e determina que o mesmo é aplicável às empresas públicas existentes à data da sua entrada em vigor (art. 23º/2). Temos, assim, que as demandadas C.P. e REFER são, por expressa determinação do direito positivo, pessoas colectivas de direito público, logo enquadráveis no âmbito da previsão do art. 4º/1/g) do ETAF. 2.2.5. Porém, o DL nº 104/97, de 29 de Abril, diploma que criou a Rede Ferroviária Nacional – REFER, E.P., contém uma norma especial de competência (art. 32º/1) que reza assim: “Sem prejuízo decorrente do disposto na alínea a) do nº 2 do art. 3º, compete aos tribunais judiciais o julgamento de todos os litígios em que seja parte a REFER, E.P., incluindo as acções para efectivação da responsabilidade civil dos titulares dos seus órgãos para com a respectiva empresa”. Ora, por um lado, este preceito é anterior à Lei nº 13/2002 de 19 de Fevereiro e não faz parte do elenco indicado na norma revogatória deste diploma (art. 8º). Por outro lado, “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador” (art. 7º/3 do C. Civil). A Exmª Magistrada do Mº Pº, no seu parecer, é de opinião que a norma especial de competência prevista no DL nº 104/97, relativamente às acções para efectivação da responsabilidade civil da REFER, deve considera-se revogada pela Lei nº 13/2002, ao abrigo da segunda parte do art. 7º do C. Civil. Subscrevemos este entendimento. Na verdade, a Exposição de Motivos parcialmente transcrita supra em 2.2. dá nota de que o legislador quis alargar o âmbito da jurisdição administrativa, no domínio da responsabilidade civil extracontratual, com a intenção inequívoca de eliminar conflitos de jurisdição e que foi com essa motivação confessada que determinou que passava a caber à jurisdição administrativa a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil das pessoas colectivas de direito público, independentemente de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado. Deste modo, é de concluir que, (i) neste específico domínio, a lei nova veio regular toda a matéria da lei anterior, (ii) tendo o propósito claro de suprimir os regimes especiais desconformes, eliminando potenciais fontes de conflitos e que (iii) por consequência, por força do disposto no art. 7º, nºs 2 (parte final) e nº 3 (2ª parte) do C. Civil, deve considerar-se revogada a norma do art. 32º/1 do DL nº 104/97, de 29 de Abril, atributiva de competência aos tribunais da jurisdição comum. Não há, pois, razão, para excluir do conhecimento dos tribunais administrativos as acções para efectivação de responsabilidade civil extracontratual da REFER. 2.2.6. Posto isto, resta determinar a competência em relação ao 1º réu, condutor do comboio. Ora, o conhecimento das acções para efectivação de responsabilidade civil extracontratual dos servidores das pessoas colectivas de direito público, por danos ocorridos no exercício das suas funções e por causa delas (art. 271º/1 CRP), qualquer que seja o regime da prestação do seu trabalho e qualquer que seja a natureza da actividade causadora do dano, está atribuído à jurisdição administrativa, por força do disposto no art. 4º/1/h) do ETAF. Vide, neste sentido: -Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, “Código de Processo Nos Tribunais Administrativos”, I, p. 60; - Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, 4ª ed., p. 125 3. DECISÃO Pelo exposto, acordam em julgar competentes os tribunais da ordem administrativa para conhecer da acção. Sem custas. Lisboa, 23 de Janeiro de 2008. – António Políbio Ferreira Henriques (relator) – João Manuel Belchior – António Bento São Pedro - João Moreira Camilo – Manuel Joaquim Sousa Peixoto. |
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